Ignácio de Loyola Brandão fala ao Tertuliana

 

Loyola: “Os retrógrados estão sempre de plantão” 

O escritor Ignácio de Loyola Brandão respondeu entrevista exclusiva para este site. Loyola participa do Festival Literário A(o)gosto das Letras em um encontro com Jefferson Del Rios com o tema “Literatura e resistência”. O encontro acontece no dia 14 de agosto às 20h no Lelui Restaurante.

 

Tertuliana - O ourinhense Jefferson Del Rios disse que você, além de escritor, é também um caixeiro-viajante. O que tem ficado da experiência de tantas viagens participando de eventos literários pelo país?

Loyola:  Antes de mais nada é uma alegria me encontrar com Jefferson, amigo de tantos anos, na cidade natal dele. O lugar onde nascemos é complicado, às vezes perigoso, pisamos em ovos. Sei, sou do interior. Nossas experiências se aproximam e se distanciam, mas vivemos a mesma época, os mesmos fatos políticos, somos sobreviventes. Uma mesa com nós dois poderá durar 20 horas, vinte dias, vinte anos.

Agora, as respostas. O escritor brasileiro contemporâneo, digo no primeiro capitulo de meu livro mais recente, O Mel de Ocara, é completamente diferente daqueles que nos antecederam por gerações. Há décadas tornei-me um viajante. Saltimbanco, percorro o país contando histórias, falando do processo de criação, discutindo a formação de leitores, comentando ou criticando a ausência de políticas culturais ligadas à literatura. Laptop na mão, cadernetinhas de anotações nos bolsos, nós, os escritores atuais (nem todos, claro) atravessamos o Brasil conversando, ouvindo, levando informações, conhecendo as diferenças de linguagem, de comida, do matambre gaúcho ao peixe Filho do Pai de Égua do Pará, da muqueca capixaba à Cabeça de Galo paraibana, da Sequência de Camarões santacatarinense ao  Quebratorto matogrossensse. E tomando sucos (ou caipiroscas) de graviola, pinha, cajá, cupuaçu, acerola, o que seja. Sucos inesquecíveis, perfumados, como os do Abraão.

Este “novo/velho” escritor viaja de avião, ônibus, jardineira, carro, entra em hotel, sai de hotel, fala em teatros, circos, auditórios, igrejas, grêmios universitários, quadras esportivas, estações ferroviárias desativadas e transformadas em centros culturais, praças públicas. Sua plateia é de professores, coordenadores pedagógicos, estudantes de letras ou do ensino médio (mas há autores que dominam maravilhosamente o ensino fundamental).

O autor contemporâneo brasileiro é um misto de falador e escritor, nova raça,  animal de terra e água e ar. Ainda é cedo para se saber o resultado desta espécie dentro do que se produz. Mas certamente é um bicho que conhece cada vez mais a terra em que pisa, este Brasil.

Hoje, é raro o escritor que não faça um mínimo de 10 palestras pagas por ano. Há cachês maiores e menores. Quando começamos a percorrer o Brasil em 1975, Antônio Torres, João Antonio e eu, nada ganhávamos, muitas vezes pagávamos nossa comida, hospedávamos em casas de professores ou alunos, ou pensões baratas. Hoje, há feiras de livros promovidas por prefeituras, pelo Estado, pela Câmara Brasileira do Livro, por colégios, centros acadêmicos, associações culturais, secretarias. Há as Bienais de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Fortaleza, Belém, Corumbá, Votuporanga, há a Feira de Porto Alegre, das mais tradicionais, há a Jornada de Passo Fundo, que coloca seis mil pessoas na plateia,  há o SALIPI, a FLAP, de Macapá, o Festival da Mantiqueira,  A Feira Pan Amazônica e seus Salões, no Pará,a Fliporto, a Flipiri, o Forum das Letras de Ouro Preto, a Flimar (Feira Literária de Marechal Deodoro),  o Salão de São Luiz e dezenas mais.  Assim como existe O Escritor no Paiol, do jornal Rascunho, de Curitiba. E o T Bone, açougue de Brasília, que montou um centro cultural e colocou bibliotecas nos pontos de ônibus da cidade.

Conheci o Brasil inteiro nos últimos 40 anos, atravessando em todas as direções, com os mais diferentes companheiros. O que se lê em O MEL DE OCARA, em ritmo de humor, seriedade, prazer, diversão, reportagem, aqui são momentos dessas viagens. Não é trabalho acadêmico. Crônicas, quase contos, em que falo da formação de leitores, das curiosidades de cada lugar, do típico ou regional que se mantém, da maneira de se expressar, do vocabulário. E do comer. Come de tudo o escritor de hoje. Da comida de boteco, do pastel de beira de estrada, tão amado por Fernando Sabino, desde que fosse de ontem e frio, às lagostas e patinhas de caranguejo do Beach Park em Fortaleza.

Conheci (conhecemos) coisas notáveis como a Casa Meio Norte, de Teresina, os Quiosques e Casas de Leitura, de Rio Branco, os Barcos da leitura de Belém e do Amapá, os Agentes de Leitura, de Fortaleza, as Bienais Fora das Bienais em cidades diversas, o Salão no Delta do Parnaíba. Retratos de um Brasil desconhecido, que funciona apoiado em pessoas heróicas, que batalham para mudar as coisas. Falo dos bastidores, das ideias originais, das descobertas e de gente que está procurando encantar os outros com a leitura e os livros. Não me preocupei com a cronologia e sim com as situações, os casos. Aqui está parte do retrato do escritor brasileiro atual. E de um Brasil diferente.

 

 

Tertuliana - Você descreveu o encontro entre o time do Santos com Pelé e filósofo e escritor Sartre em uma esquina em Araraquara. Qual das duas comitivas você seguiria hoje?

Loyola: Seguiria Sartre e Simone, claro. Pelé é um estranho ser que se tornou monumento e se considera como tal. Um homem de bronze. Inclusive suas ideais e pensamentos são cobertos por teias de aranha, fora da realidade, posando sempre para fotografias. Veja só o que ele disse depois que o Brasil caiu de sete aos pés da Alemanha, uma catastrófica humilhação. “Não faz mal, traremos o hexa da Rússia na próxima Copa”. Tá doido, eu ir atrás de tal pessoa?

Tertuliana - Em tempos de liberdade de expressão, um livro que seria distribuído para as escolas paulistas foi recolhido por causa de um texto seu. Conte como foi esse episódio.

Loyola: Os retrógrados estão sempre de plantão. A pré-história ainda existe em matéria de educação. O meu conto “Obscenidades para uma dona de casa” tem 31 anos, hoje. É um de meus melhores contos.  Está dentro da antologia organizada por Italo Moriconi, “Os Cem Melhores Contos do Brasil”, um livro que não sofreu a mínima contestação, reparo. Meu texto já foi traduzido para dez línguas. Tornou-se monólogo teatral e foi feito cinco vezes em vídeo. É um conto bem humorado, sarcástico, realista, em torno da solidão, da carência, da falta de afeto, da sublimação. Mas certos pais, professores e diretores atrasados não viram assim. Viram nele o que está dentro deles, a pornografia. Não é pornografia, é erotismo. Há uma grande diferença entre as duas coisas. Por causa desse conto que foi adotado na Escola 221 no Senai em Santo André a bibliotecária foi demitida pela diretora da escola, uma mulher com mentalidade medieval . Um bombeiro de Guarulhos tentou chegar ao ministério publico querendo minha prisão. Ora, pais e professores parecem não conhecer os jovens, os estudantes. Recebi dezenas de cartas de apoio de professores que trabalharam com alegria o conto em classe. Saí com a mídia e fomos entrevistar jovens. A melhor resposta que tive foi dada por uma jovem de 16 anos em Bauru:

O senhor conhece a história da mãe que chamou a filha e disse:

- Sente-se ai, vamos conversar sobre sexo.

E a filha, sentada, perguntou:

- Tudo bem, mamãe, o que a senhora quer saber?

Saibam todos que a luta da arte contra o obscurantismo será eterna.

 

 

Tertuliana -  Seu livro “Zero”, censurado pelo governo militar, trouxe inovações do ponto de vista da forma e apresentação gráfica. Como foi essa concepção?

Loyola: O golpe militar tinha sido vitorioso.  No dia 1 de abril de 1964, o jornal Ultima Hora, onde eu trabalhava, foi fechado no início da noite por uma tropa de choque da Força Pública de São Paulo, hoje Policia Militar. Os soldados quebraram máquinas de escrever, teletipos, telefones, a cabine em que ficava a telefonista, chutavam cadeiras com prazer. Dos nossos, uns foram para a casa, outros para os cinemas, alguns se esconderam, muitos ficaram de sobreaviso. O Última Hora sempre estivera ao lado de Jango Goulart, o presidente deposto e éramos visados. Duas semanas depois o jornal foi reaberto. Muita gente ausente. Uns presos, outros exilados (como nosso fundador e diretor Samuel Wainer), outros permaneciam escondidos em algum ponto. Nessa reabertura estávamos atônitos, tinha havido um golpe, mas não parecia ter havido nada, a cidade continuava a funcionar normalmente, um presidente nem parecia ter sido deposto, um regime mudado à força. Esse clima está em um conto meu, Camila Numa semana, Ao som de Nara Leão!, do livro Pega Ele, Silencio.

Na redação, um elemento novo, o censor. Presença física nesse período chamado pré-história da censura. Odiávamos aquele sujeito que se mostrava indiferente, estava fazendo o serviço dele. Cada matéria que eu, então secretário gráfico (esse era o titulo na época) devia colocar na página, mandava antes para o censor, que aprovava ou não.  O não permitido voltava a mim com um carimbo retangular, tinta verde, e a palavra VETADO. No primeiro dia, censurada a matéria, não coloquei nada no lugar, em acordo com a direção da Última Hora.  Quase todos os jornais fizeram o mesmo. Ficaram buracos brancos. No segundo dia os censores proibiram os brancos em todos os jornais, éramos obrigados a preencher com alguma coisa. Não sei por que, talvez instinto, tudo o que o censor vetou no primeiro dia, joguei dentro de uma gaveta, as mesas de redação eram enormes. Artigos, notícias, reportagens, entrevistas, fotos, caricaturas, legendas, críticas. Não se podia, por exemplo, falar mal de estadistas amigos. Não se podia criticar os americanos.

E comecei a encher caixas. Certa vez, num momento de tédio, abri as caixas e comecei a olhar aquele material. Fiquei perplexo. Aí me bateu uma coisa, ficou lá no fundo. Ali estava o que tinha sido oculto, escondido dos brasileiros para tudo parecer normal. A verdade estava naquelas caixas. Aquele era o outro Brasil, que ninguém conheceu, ninguém soube, eu precisava mostrar.

E me veio a idéia de um romance. Zé Celso me disse: é um romance, é isso, monta assim mesmo, desordenado, louco, fragmentado, o Brasil está assim. Não arrume nada, o país vive desorganizado.  Para mim estava explodido, dilacerado. Comecei a ordenar o material, ainda que fosse impossível. Ítala Nandi, atriz do teatro Oficina, outra amiga na época,  outra paixão, mas ela estava casada com Fernando Peixoto, sentou-se comigo catando papéis, fotos,  desenhos. “Crie logo os personagens, amarre a ação ao personagem”, disse ela.

Os anos passaram.  Deixei a Última Hora em 1966 e fui para a revista Cláudia, da editora Abril. Ali também havia censura, mas o esquema tinha se sofisticado, enviávamos tudo a Brasília, eles davam o sim e o não. Na Cláudia havia que se tomar cuidado com matérias sobre virgindade, sexo antes do casamento, aborto, pílula anticoncepcional, drogas, religião.

Então, me deu uma louca. Amontoei no apartamento todas as matérias censuradas. As velhas e as novas, que a cada dia tinha mais, e mais, e mais. E a cada dia pegava um papel e escrevia alguma coisa em cima. Uma ficção-realidade. Montava uma historinha a partir do grupo que vai atrás do menino com música na barriga. Veio-me à cabeça uma lembrança de infância, um livro sobre um menino que tinha o rei na barriga.

Assim escrevi por meses e meses. Aquilo era São Paulo, gente de São Paulo. Não tinha um personagem único. Decidi e montei um protagonista que conduziria a ação. Foi quando José começou a aparecer e crescer. José era o mais brasileiro dos nomes. A cada dia sentia que aquele livro era o atoleiro em que o país se metera. Os subterrâneos, os esgotos, os gritos dos feridos e torturados, as mortes, suicídios, dores, amores impossíveis, casais desfeitos, a liberdade encurralada, o medo sempre presente, os cassados, os cientistas que partiam.

A cada dia produzia um fragmento. Era um livro? Quem leria um livro desses? Então começou a vir à minha cabeça, cada vez mais, o filme Oito e Meio, de Fellini, um de meus favoritos. Aquela estrutura de vários planos, o real, o imaginário, o idealizado, o da memória, do sonho, tudo isso me deu uma certeza: essa era a estrutura. Uma narrativa livre. Zero começou assim, livre, solto.

Os anos se passavam e eu escrevendo. Chegou a quase quatro mil laudas, e crescia. Perdi as contas. Então escrevi tudo de novo.  Reescrevi. Quem olha hoje o original final vê laudas amarelas, cor de rosa, azuis, papel de pão, folhas de papel almaço, papel sulfite A4, tem de tudo. O romance tomava forma. Escrevi de novo. Desesperado, que livro era esse, quem leria? Ia para todos os lados e para lado nenhum. Escrevia para mim, para desabafar, para suportar o que via à minha volta, as cassações, as torturas, as mortes, as bombas, a guerrilha urbana, a repressão, aquele delegado Fleury odioso.

 

 

Tertuliana - Como é a experiência de escrever por encomenda, sejam crônicas para jornal ou textos preparados que se transformam em livros para empresas (história empresarial)?

Loyola: Veja lá, crônicas não são exatamente “encomendas”, no sentido vulgar de: quanto você pede para escrever sobre isto? Crônica é um exercício constante da literatura, é um desafio complicado para o escritor. Um ofício que me obriga a estar alerta, porque para mim a crônica é um recorte da realidade, um olhar sobre e o nosso cotidiano, sobre personagens anônimos. Há uma definição que corre entre nós cronistas: Crônica é literatura sob pressão. Em nossas criações não temos prazos, terminamos quando terminamos. A crônica exige o prazo. Gostaria até de falar em Ourinhos sobre o tema. Quanto aos livros que chamamos institucionais, ou de encomenda, só aceito quando o tema, seja a história de um banco, uma empresa, uma pessoa, me interessa, me comove. Escrevi o perfil afetivo de Ruth Cardoso porque foi uma mulher que emocionou o Brasil, a primeira que deu sentido ao posto de primeira dama. Não chamo tais livros de biografais e sim de perfis afetivos, porque os personagens me tocaram de alguma maneira. Quando escrevi sobre Carlos Martins, o criador da imensa rede Wizard de ensino, o que me estimulou foi ver a trajetória do filho pobre de um caminhoneiro do Paraná se transformar em bilionário empresário do ensino, criando um método inusitado de aprender línguas. Se enfrentei a história do Leite de Rosas, esse que nossas avós, tias e mães usaram e ainda usam, é porque vi nele o romance de um migrante nordestino que fugindo da seca, tornou-se milionário, quebrou, ficou a zero e reiniciou a vida após os 59 anos, numa época (1929) que um homem de 40 era velho e um de 50 era caquético. Aceito encomendas quando sei que elas vão me enriquecer. Gosto de escrever sobre a empresa privada e saber o que move um empreendedor, o que ele tem dentro, o que o move.

*ENTREVISTA EXCLUSIVA AO TERTULIANA: reprodução permitida sob consulta ao site.

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