“A espingarda”, texto de Bernardo Kucinski, é selecionado em primeiro lugar

 

Jornalista e professor titular da USP, hoje aposentado, Bernardo Kucinsky é o autor do conto selecionado em primeiro lugar no Concurso de Contos de Natal promovido pela Associação de Amigos da Biblioteca Pública, a AABiP.

Kucinski é autor de cerca de vinte livros publicados no Brasil e no exterior, entre os quais “Jornalistas e Revolucionários”, “Jornalismo Econômico” e “Síndrome da Antena Parabólica”. Recebeu o Prêmio Jabuti por “Jornalismo Econômico”. Em 2011 publicou seu primeiro romance, “K.”, já traduzido em várias línguas. Sua coletânea de contos: “Você vai voltar para mim” recebeu o prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional.

 

Confira o conto de Bernardo Kucinsky:

 

A ESPINGARDA

 

Noite. A luz pálida do luar penetra no quarto das crianças pelo vão das cortinas, projetando no piso um quadrilátero leitoso. Tomados pela excitação do Natal, nenhum dos três irmãos consegue dormir. Viram quando o pai descarregou da camionete os embrulhos enormes. Não lembram de presentes de Natal que precisassem de pacotes daquele tamanho. O que será que tem dentro?

Afonsinho, o caçula de cinco anos, quer um carrinho de comando. Gosta de brincar de carrinho, mas nunca teve um com controle remoto. Fez o pedido na carta ao Papai Noel ditada para a mãe. A irmã do meio, Cecília, tem sete anos e já sabe escrever. Sonha com uma casa de bonecas igual à da prima de São Paulo, de vários andares, cheia de portas, janelas e gavetas. Ela mesma escreveu a carta com o pedido ao Papai Noel. A mãe só ajudou.

O mais velho, Mário, com dez anos, parece ter doze, de tão crescido, e quer ganhar uma caixa de ferramentas. Mário não acredita mais em Papai Noel, não escreveu carta nenhuma, mas o pai sabe do seu desejo por uma caixa com muitas ferramentas. Mário sempre gostou de mexer em máquinas para ver como elas funcionam e por causa disso também gosta de ferramentas. É com as ferramentas que se abrem as máquinas.

Mário só tinha cinco anos quando desparafusou a parte de trás de um despertador parado e o desmontou inteirinho, uma peça de cada vez. Depois, não conseguiu montar de volta, mas descobriu como funcionava e qual era o defeito: uma das molinhas havia se partido.

Seu lugar preferido no sítio é o galpão das enxadas e consertos, onde o pai despeja, num dos cantos, objetos velhos e imprestáveis. Lá encontrou as rodas de carroça com rolimãs, que desmontou, para fazer um carrinho. Também o cata-vento, a lanterna de quatro pilhas e a maquininha de torrar café. Conseguiu recuperar a lanterna lixando a ferrugem de dentro e da tampa.

É essa lanterna que acende agora, dentro do quarto. Brinca de projetar sombras na parede, imitando uma cabeça de cachorro. Afonsinho resmunga estou com medo. Cecília não diz nada porque acaba de sucumbir ao sono. Mário brinca mais alguns segundos, percebe que os irmãos já dormem e desliga a lanterna. Será que eu vou ganhar uma caixa de ferramentas? É o seu último pensamento antes de cerrar os olhos.

 

II

 

Afonso pai decidiu dar aos filhos presentes especiais neste Natal. Pela primeira vez em muitos anos os preços não caíram na safra e a colheita foi boa. Também pensou na idade dos filhos. Como o tempo passa depressa. O Mário completando dez anos, número redondo; o caçulinha, outro número redondo, cinco anos, e a do meio, a danada, com sete anos já terminou o primeiro ano do grupo escolar e  sabe escrever como se fosse gente grande.

Escolher os presentes não foi difícil porque a mulher mostrou as cartinhas ao Papai Noel. Deu algum trabalho achar a casa de bonecas pedida pela filha; na loja só havia modelos pequenos e precisou deixar o pedido e voltar depois para apanhar. Felizmente pensara nisso com duas semanas de antecedência.

E para o Mário, que diz que não acredita mais em Papai Noel? Ele não escreveu cartinha porque sabe que eu sei que ele quer uma caixa de ferramentas. Mas eu vou fazer uma surpresa; ferramentas tem muitas em casa, pode usar as minhas, aliás, já usa.  Vou dar a ele um presente que todo menino da idade dele deseja. O presente que eu tanto queria quando tinha dez anos, mas meu pai não me deu. Vou dar a uma espingarda de matar passarinho.

 

III

 

Manhã. A luz provocante do sol atravessa o tecido tênue das cortinas clareando o quarto das crianças. Mário é o primeiro a despertar. Sai correndo para abrir os presentes,

sem avisar os irmãos. Mas, na afobação deixa cair a lanterna, os outros acordam e também saem correndo. Todos ainda de pijama.

Procuram nos pacotes, espalhados ao redor da árvore de Natal, as etiquetas com seus nomes. Afonsinho não sabe ler, mas reconhece as letras de seu nome. É o mais apressado. Dez minutos depois estão os três às voltas com seus brinquedos. Afonsinho, com a ajuda do Mário colocou as pilhas no compartimento do controle e já está testando no cimentado do quintal o carro elétrico. Cecília vai desembrulhando bem devagar as pecinhas soltas da casinha de bonecas, colocando-as uma a uma nos compartimentos: mesinhas, cadeirinhas, caminhas.

Mário não está propriamente decepcionado por não ganhar a sonhada caixa de ferramentas, porque a espingarda que o pai lhe deu é muito bonita e veio num estojo com a marca do Zorro. Nem parece espingarda de criança. Além da espingarda, o estojo contém um cinturão de verdade, com cinquenta cartuchos, uma escovinha, uma flanela de limpeza e um manual.

Mario examina demoradamente a espingarda, o modo como se dobra o cano para carregar, a maneira de colocar o cartucho e depois fechar com firmeza, para travar. Estuda o manual, que ensina a fazer a mira. Só então vai ao quintal, coloca duas latas vazias de óleo em cima de um caixote, recua até a porta da cozinha e experimenta a pontaria.

 

IV

  

À tardinha, hora dos passarinhos procurarem seus ninhos, vão os três irmãos para o pomar, Mário à frente, os outros dois seguindo, disciplinados. A passarinhada mais numerosa faz sua revoada em torno da grande mangueira.  A um sinal de Mário, todos param. Mário então ajoelha-se, como viu no manual, visa um determinado ramo da mangueira, depois outro, até se fixar num bem-te-vi. Apura a mira a puxa o gatilho. Pum!

 

O bem-te-vi despenca e bate numa pedra. Os três aproximam-se passo a passo. O corpo do passarinho jaz inerte, de lado, deixando ver uma asinha quebrada; um dos olhinhos mortos fita acusadoramente as crianças. Filetes de sangue saem do bico e dos olhos do bem-te-vi.

Afonsinho é o primeiro a chorar; choro solto, sentido. Cecília, pálida, soluça e grita, você matou o passarinho! Você matou o passarinho! Mário joga a espingardinha para longe e corre em direção à casa. Tranca-se no quarto. Só sai à noite, quando o chamam para o jantar. Come em silêncio. Toda a família come em silêncio as sobras de ceia de Natal.