CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO MUSICAL COM ENNY PAREJO
Um dos assuntos abordados nos cursos do Festival é a aplicação do ensino musical nas escolas públicas. Este ano Enny Parejo coordena o curso “Música na Escola”, e foi entrevistada pelo Balaio. Autora das obras Musicalizar - uma proposta para vivência dos elementos musicais (SP, 1987), Estorinhas para Ouvir - aprendendo a escutar música (São Paulo, 2007) e de diversos artigos sobre educação musical em obras coletivas, a professora dirige também o Enny Parejo Atelier Musical.
Um dos maiores problemas enfrentados para efetivação do ensino de música nas escolas é a falta de professores. Como você acredita que isso possa ser resolvido? As escolas estão preparadas para a inclusão da música em seus currículos?
A ambiguidade existente na interpretação da lei causa alguns problemas para a efetivação da prática musical em sala de aula. A lei diz que a música é conteúdo obrigatório e não disciplina obrigatória, o que significa que a música pode ser inserida na escola de variadas formas, mas sem ter um espaço específico garantido. Além disso, o veto parcial do Presidente Lula ao artigo da Lei 11.769/08 que propunha um especialista da área para ministrar a disciplina, de certa forma esfriou as expectativas que tínhamos em relação à volta da musica como disciplina, com carga horária efetiva e professor especializado na matéria. Como se já não bastasse, a regulamentação da lei ficou a cargo dos Conselhos Municipais e Estaduais de Educação, o que ocasiona grande diversidade na forma da presença da música na escola. O que se percebe na prática é que quando uma prefeitura deseja criar uma política pública para a música na escola esta acontece; quando não, nada acontece e não faltam justificativas para que esse situação perdure, amparadas na própria ambiguidade da lei. O que será feito dependerá da política pública interna de cada prefeitura ou estado.
Nas últimas décadas o ensino das artes foi afastado das escolas brasileiras, mais preocupadas em investimentos tecnológicos ou de estrutura física. De que maneira o contato com as artes pode auxiliar na melhoria da educação?
Arte é uma forma poderosa de educação da sensibilidade e do olhar crítico sobre o mundo. A experiência estética é tradicionalmente desvalorizada em nossa cultura regida pelo paradigma tecnicista e cartesiano. A arte concebida como possibilidade de abertura dos indivíduos, e, de ampliação de suas perspectivas filosóficas e críticas se torna perigosamente transformadora. Nesse sentido, não me parece surpreendente a pouca valorização da arte e da própria educação em nosso pais. Indivíduos sensíveis e críticos, não conseguem assistir passivamente às nossas emissoras de televisão ou ouvir nossas rádios que não agregam qualquer informação ou valor à sua experiência de vida, e naturalmente, por essa mesma via, não aceitariam explicações ligeiras, ao verem seus direitos ameaçados. Eu poderia repetir o discurso que sempre se evoca em defesa da arte e da música, sobre seus aportes cognitivos, motores, neurológicos, psicológicos e sociais, mas prefiro apenas dizer que a arte levada a sério em nossa escola produziria crianças e jovens mais sensíveis, críticos, com apuradas demandas estéticas e dificilmente manipuláveis.
As crianças e jovens crescem hoje num mundo que privilegia a imagem e o uso de aparelhos como computadores, ipads, etc. Como retomar a concentração, disciplina e sensibilidade para ouvir, por exemplo, seu trabalho com Historinhas para ouvir?
Percebo que ainda há espaços ocupáveis de interiorização nas crianças, nos jovens, nos adultos, todos estão sedentos de relaxamento, interiorização, autoconhecimento, assim como de conhecimento do outro, não sabem, porém, como fazê-lo, as rotinas cotidianas nos afastam dessa possibilidade, os ritmos da vida moderna nos sequestram. O caminho a trilhar com as crianças é mais fácil, elas não têm ideias preconcebidas, se entregam mais facilmente a coisas novas, “viajam” mais facilmente na imaginação; com os jovens é necessário dialogar sobre a condição humana, perceber por quais caminhos seguir em direção ao relaxamento, à entrega, à concentração, é necessário ritualizar novamente o espaço da sala de aula, e isso nem sempre é muito fácil de fazer, a estrutura toda não colabora, basta ver como os espaços são inóspitos, sem beleza, com agressivas luzes fluorescentes, espaços feios e barulhentos nos quais não se consegue levar um ser humano ao contato com a beleza.
Que tipo de atividades são desenvolvidas em seu curso de musicalização para bebês?
O bebê é um ser completamente aberto às experiências que lhe propomos, de todos os tipos. A musicalização para bebês poderia na verdade, ser designada como estimulação multissensorial para bebês. Tudo é novidade para um bebê, ele reage enfaticamente aos fenômenos sonoros, visuais, táteis, olfativos e gustativos que lhe propomos; nesse sentido, a musicalização para bebês não pode tratar somente de música, mas sim de sons que se conectam a cores, a toques corporais, a imagens, entre outros estímulos. O bebê ainda não se fragmentou como nós adultos, ele vivencia uma experiência sensorial completa, e mais que isso, percebe energeticamente todo e qualquer movimento que fazemos em direção a ele, sejam movimentos concretos de estimulação ou movimentos afetivos, e reage a eles, de forma muito perceptível e comunicativa, fala com seu olhar e com a expressão de seu rosto. Um bebê é apenas o que é, não sente necessidade de criar uma imagem de si e isso nos proporciona uma aprendizagem maravilhosa. O cérebro do bebê apresenta imensa plasticidade, se transforma o tempo todo criando novas sinapses e circuitos neuronais, para todas as novidades que lhe mostramos. Seria bem difícil no âmbito dessa entrevista focalizar todos os benefícios que a musicalização de bebês pode trazer para os pequenos, talvez a enumeração dos momentos da aula que criei para possam dar uma ideia da amplitude dessa perspectiva: recepção atenta dos pequenos, apresentação de instrumentos e fontes sonoras, estimulação multissensorial, trabalho do movimento corporal, massagens e toques corporais, imersão cultural, relaxamento e despedida.
A maioria das crianças e jovens só ouvem a música veiculada através dos meios de comunicação de massa, principalmente a TV. Como o professor de música pode auxiliar na ampliação desse repertório musical?
Não há como ignorar a experiência cultural e musical dos alunos, o professor que desejar ser ouvido para apresentar novas perspectivas musicais, deverá iniciar pela compreensão dessa vida cultural que os alunos já trazem consigo. A partir dessa escuta inicial por parte do professor, muitas outras possibilidades poderão realizar-se. Se tomarmos um exemplo das periferias paulistanas, o funk, o hip hop, o forró entre outras manifestações musicais, corporificam os desejos e aspirações dos jovens, então eu começaria por aí, por ouvir tudo o que eles tivessem a me mostrar, e depois perguntaria se conhecem as origens desses gêneros musicais, e então eu iria pesquisar, e sugeriria pesquisas a eles, trocaríamos experiências em torno do tema, de seus significados sociais e musicais. Depois, eu proporia a eles que ouvissem algo do que eu teria a apresentar, construindo juntos um processo.