Sou filha de imigrante. Minha mãe, como tantos outros patrícios, queria realizar o sonho de vencer no novo país. Passou muitas dificuldades para se adaptar à nova cultura e conseguir sobreviver, e talvez por isso valorize o trabalho como objetivo de vida. Minha mãe não podia ver ninguém à toa, ia logo arrumando algum serviço, dando ordens pra arrumar ou limpar isso ou aquilo, molhar uma planta, estudar, olhar irmão mais novo, levanta daí, vai fazer alguma coisa. Ficar sem fazer nada era inconcebível quando se tinha uma vida pela frente e tanta coisa pra fazer. Essa era a regra na maioria das famílias.
Mas o trabalho nem sempre é encarado como uma obrigação penosa. Estudiosos do assunto como o italiano Domenico de Masi, que esteve no Brasil este mês e é autor do livro “O ócio criativo”, propõem que o trabalho pode ser exercido com prazer e alegria, impulsionado por tarefas criativas. As atividades repetitivas, onde a mente humana é pouco exigida, deveriam ser repassadas para máquinas ou robôs.
Nossa sociedade capitalista entende o trabalho como produção e contribuição para o lucro e riqueza, e para que isso aconteça com sucesso o tempo precisa ser muito controlado. Pensando assim, o trabalho intelectual de maneira geral é desqualificado por não atender a esses quesitos de contribuir para o lucro otimizando o tempo. Ainda existe a ideia de que artistas não trabalham, escritores são vagabundos porque não possuem horário fixo de trabalho, não conseguem produzir em série ou entregar um trabalho com tempo estipulado. Como se fosse possível compor, escrever ou pintar com hora marcada.
Ainda nesse raciocínio de que, se o trabalhador não produz algo visível ele deve ser um folgado, (sejam relatórios, planilhas, objetos, ou qualquer outra coisa), os políticos em geral ainda sentem-se diminuídos quando não conseguem inaugurar obras em forma de prédios. Deve ser por isso que nossa educação não decola. Uma formação decente para as crianças demoraria muitos anos para aparecer, muito mais do que o curto período dos mandatos.
Apesar de o desenvolvimento exigir que seja substituído o trabalho braçal pelo mecânico, ainda estamos longe da liberdade no trabalho. A tecnologia também pode escravizar, e estaríamos novamente caindo na armadilha tão grata à raça humana, de submeter e escravizar seus irmãos.
Segundo De Masi, a liberdade acontece quando não existem barreiras entre o trabalho, a diversão, o conhecimento e o lazer, como situações imprescindíveis do cotidiano. Conheço muitas pessoas (e me incluo nessa categoria) que trabalham muito e sentem-se felizes assim. Sei que é possível trabalhar, aprender e se divertir ao mesmo tempo, apesar dos pesares. Pessoas realizadas não costumam fazer divisão de tempo entre o trabalho, o lazer e a aprendizagem. Falam do trabalho na mesa de bar, buscam conhecimento para o trabalho em conversas informais, assistindo filmes ou lendo livros “fora do horário”. Afinal, construir uma sociedade diferente não é tarefa para trabalhadores indiferentes.
“Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação e a sua recreação, entre o seu amor e a sua religião. Distingue uma coisa da outra com dificuldade. Almeja, simplesmente, a excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos demais a tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo. Ele acredita que está sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo” (Domenico de Masi, O Ócio Criativo).
Neusa Fleury
Diretora da Biblioteca Pública “Tristão de Athayde”