Quando saiu de Sertanópolis, no interior do Paraná, Maria Eunice buscava muito mais que um emprego na nova cidade. Motivados pela possibilidade de oferecer um estudo melhor para os filhos, ela e o marido Aparecido pensaram em se estabelecer em algum sítio nas proximidades de Ourinhos, já que estavam habituados ao trabalho na roça.
Em Sertanópolis/PR havia estudado pouco para quem alimentava o desejo de dominar a leitura e a escrita. Antes mesmo de ler seu primeiro livro, fato que só aconteceu após sua vinda para Ourinhos, Maria Eunice sabia que sua maior satisfação seria desenvolver a capacidade de se expressar através da escrita. A idéia do sítio foi abandonada e, enquanto Aparecido providenciava a venda de sua moto para comprar um trailer, onde hoje vende lanches e salgados, ela rapidamente descobriu uma vaga de empregada doméstica na casa de dona Nice Nicolosi.
Não poderia existir local mais apropriado para Maria Eunice trabalhar. Mulher que dedicou sua vida ao ensino da música, Nice Nicolosi reconhece o valor da cultura e, além do piano insta-lado na sala, mantém uma biblioteca pessoal que logo foi disponibilizada a sua nova secretária. “Quando comecei a trabalhar na casa de dona Nice eu já estava participando da oficina de teatro, e logo me inscrevi em outra de literatura de cordel. Sempre fui uma apaixonada pela leitura, e lia jornal sem me preocupar com a data, só pelo prazer de ler”, lembra Eunice.
Um dos primeiros lugares que visitou na cidade foi o Museu Municipal, onde conheceu o funcionário Isaias, que percebendo seu interesse, foi logo indicando a Biblioteca Municipal Tristão de Athayde. Foi lá que Maria Eunice Ferraz da Silva teve acesso ao seu primeiro livro: a biografia da escritora Clarice Lispector. Depois vieram outros: “Li os livros da Clarice, do Castro Alves, do Carlos Drummond de Andrade...”. Daí para frente não parou mais: “Dona Nice me incentiva muito a ler. É uma pessoa muito culta”. Em algumas ocasiões ela dorme na casa de dona Nice, e logo após servir o jantar, se debruça sobre a sobremesa: um livro emprestado da Biblioteca Municipal ou algum outro título do acervo da patroa.
No 3º A(o)gosto das Letras, evento promovido pela Secretaria da Cultura, Maria Eunice assistiu aos recitais poéticos das escritoras Zélia Guardiano e Elisa Lucinda. Aproveitou também para participar de uma oficina de escrita criativa. Hoje ela escreve seus próprios versos: “Eu escrevo sobre coisas que aconteceram na infância, quando as pessoas tinham mais respeito umas pelas outras. Escrevo também sobre a cidade, sobre o meu passado na roça”.
Os quatro filhos, Daiane, Erick, Alisson e Jaqueline incentivam a mãe, mesmo achando “meloso” demais o que ela escreve: “Eles gostam de outras coisas, mas ficam felizes”. Das lembranças de Sertanópolis ela destaca um triste episódio que teria causado um bloqueio no seu aprendizado. Nos poucos anos que frequentou a escola sempre deu mais atenção ao aprendizado da leitura e da escrita, sem se importar muito com a matemática. A falta de interesse pelos números foi confundida com deficiência, e acabou sendo encaminhada para a APAE: “Foi uma experiência ruim, mas compreendo que eles não sabiam lidar com aquilo. Depois de um mês perceberam o engano”.
Maria Eunice continua acreditando que sempre terá alguma coisa para aprender. Além das aulas de canto na Escola Municipal de Música, já se inscreveu também em uma oficina de canções nordestinas. E sabe que ainda terá muito tempo para aprender matemática.
A FUGA DO NORDESTINO
por Eunice Ferraz
Meu amigo venho vindo
Lá do agreste do sertão
só trago essa mala
sem sapatos pés no chão
não me acanho de pedir
um cadinho de água e pão
sou sertanejo amigo
medo da lida tenho não
ilusão pra minha vida
já tive de montão
sou viajante cansado...
mas vencido não...
perdi gado com a seca
sol ardente me tirou
só não tirou-me a vida
isso é tudo que restou
já passei por tantas terras
igual aqui não vi não
que pena da minha gente
que ficou no meu sertão
a cidade de Ourinhos
conquistou meu coração
incentivos encontrei
essa terá não deixo não.
Texto: Marco Aurélio Gomes
Texto publicado na edição 43 do Jornal Balaio Cultural de setembro de 2011