Deus-me-Livre era uma cidadezinha esquecida por Deus e pelos governantes, cercada de morros com vegetação espinhosa e cortada por um rio que as vezes transbordava e levava boa parte das modestas casinhas do vilarejo. A única diversão dos habitantes de Deus-me-Livre era a novela das sete ou das o isto. Até que um dia...apareceu no lugar, a Louca do Abacate.
Foi sucesso imediato.
E assim, todo dia, ou melhor, toda noite, lá pelas 18h30 ou dezenove horas, ela fazia o seu discurso. Ali mesmo, num banco da pracinha, perto do coreto, uma plateia fiel aplaudia as suas performances. A Louca do Abacate, como passou a ser conhecida, não tinha discurso repetido. Passeava por temas variados: política, religião, folclore, amores desmedidos, feitos históricos de heróis desse e de outros mundos e o que a imaginação do espectador pudesse ousar. Com um abacate na mão esquerda-por que um abacate?-ela gesticulava e dava vida às personagens que pareciam surgir do nada e ganhavam vida própria naquele palco inusitado. Muitos viam-se retratados naquelas figuras fantásticas descritas pela hipnótica na narradora. Certo dia, um político desonesto tentou proibir o discurso da Louca do Abacate naquela tribuna democrática, pois quando ela encarnava um político sem escrúpulos, todos achavam que só podia ser o safado, num retrato sem retoques.
Ah, o povo fez manifestação em frente a casa do dito cujo e ele mudou-se para aquele lugar ,onde o filho chora e a mãe não ouve e as mulas-sem-cabeça pastam tranquilamente nas noites de lua cheia.
Até que um dia, ou melhor, uma noite, a Louca do Abacate não apareceu para mais um discurso inédito e espetacular. A cidadezinha emudeceu. Os vendedores de sorvete e cachorro quente lamentaram o fato. Um deles, muito decepcionado, enforcou-se num pé de cebola geneticamente modificada. E Deus-me-Livre voltou à sua letargia televisiva, mas... um mês depois, lá pelas 18h30 ou dezenove horas, alguém ocupou a tribuna.
Era um unicórnio, bem vestido e chamou muito a atenção logo na primeira noite. Seu discurso era humanista e moralizador. Prometia que, se fosse eleito nas próximas eleições, o povo de Deus-me-Livre teria emprego, educação de qualidade, saúde, segurança e muito mais. No segundo dia, ou melhor, na segunda noite, ninguém apareceu para ouvi-lo. O unicórnio, decepcionado, chegou a uma conclusão: o povo daquele pobre vilarejo nunca chegaria a lugar nenhum. Talvez o sábio unicórnio não soubesse que o universo está cheio de boas intenções, e o povo, por mais humilde e desinformado que seja, tem lá as suas razões para descartar o óbvio.
Algum tempo depois, um artista plástico e escultor da cidadezinha, fez uma estátua em homenagem à Louca do Abacate. Poetas e músicos passaram a contar a sua história em verso e prosa e belas melodias. E o povo de Deus-me-Livre, alheio ao progresso do mundo moderno, preocupava-se apenas com o destino dos mocinhos, heroínas, bandidos e vilãs das novelas das sete ou das oito. Mas acreditem, alguma coisa mudou.
Agora, todo ano, em Deus-me-Livre realiza-se a Festa do Abacate, que atrai turistas da região e, quiçá, do pais inteiro. O evento, devido ao seu sucesso, foi incluído no Calendário Cultural e Degustativo do Estado.
Progresso é isso. Em Deus-me-Livre as coisas acontecem naturalmente e ninguém dá bola para a besta realidade.