O bilhete

Eu vi, estive com ele – o bilhete da suicida. O caso aconteceu numa época em que quem queria morrer tomava formicida. A família não guardou aquela folha de caderno escrita a lápis, que ficou arquivada no processo do inquérito, junto com depoimentos datilografado “Que era moça alegre, ajuizada, boa filha, sonhadora. Ajudava a mãe, tratava dos porcos e das galinhas, labutava na horta. Não, não freqüentava escola, mas escrevia o suficiente para as cartas da mãe ou o livro de receitas. Que era apaixonada, sim senhor. Pelo moço do sítio vizinho. Que não tinha podido se casar com ele neste ano, como estava combinado. Sabe como é, doutor, ficou sabendo que era ano bissexto, não é bom casar em ano bissexto. Que ficou combinado que se casariam no ano seguinte. Que o moço foi se afastando, foram rareando as visitas. Nem na missa de domingo se encontravam mais. Que a moça foi ficando triste, não entendia porque o noivo não podia esperar. Casar em ano bissexto? Não,  não prestava – o que custava esperar mais um ano? Que naquele dia foram todos à missa na cidade, como faziam aos domingos. Que a moça disse que estava com dor de cabeça. Que a missa era de manhã, sim senhor, e foram de charrete, e a moça ficou só. Que iam passar na comadre depois da missa para almoçar, e em seguida estariam de volta, que a moça cuidasse da criação. Que não demoraram muito na comadre, que preparou um frango refogado. Que chegaram em casa e viram que a moça estava dormindo. Não estranharam porque ela disse que estava com dor de cabeça. A mãe se agarrou nos trabalhos domésticos e o pai foi afiar as ferramentas para o trabalho da semana e consertar uma cerca arriada. Que estava anoitecendo e a moça não acordava. Que chamaram e ela não respondeu. Abriram a janela e estranharam a palidez do rosto. Que perceberam que estava com o vestido novo, de florzinha amarela, e deitada de sapatos. Estranharam que estivesse de sapatos. Que o pai foi chamado, a mãe pressentiu e não teve coragem. Que o pai chegou e tocou no rosto da filha. O corpo já estava rígido, frio – morta há horas. Que os cabelos estavam bem penteados, e as mãos cruzadas sobre o peito, como deve ser. Que a mãe gritou, sim senhor, e o rosto do pai era só horror. Aí eu vi no criado ao lado da cama um papel de caderno com um lápis em cima. O bilhete foi escrito com lápis preto, e terminava com lápis vermelho. Não se sabe porquê. Será que quebrou a ponta, será que apertou demais, de dor, raiva ou pavor? O pai não sabia ler não senhor, nem a mãe. Li em silêncio, depois li para eles, com muita pena, têm medo de Deus. Que dizia que não posso viver sem ele. Que se ele não quer mais se casar, sua vida não tem mais sentido. Que perdão pai, perdão mãe. Não quero dar nenhum trabalho, já coloquei meu vestido novo. Que digam para ele que se não for dele não vou ser de ninguém. Que sofro muito, não agüento viver assim, minha vida é só chorar. Que abracem os irmãos. Digam para ele que sua morte foi uma prova de amor. Que no bilhete tinha sim senhor o desenho de dois corações. Entrelaçados e sangrando, como as chagas de Cristo. E que sabia, sim senhor, que a moça tinha dezesseis anos.”

Tertuliana DOCS
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